“O Fio de Minos” estreia no SESC Garagem de 12 a 14 de abril. No palco o dançarino e coreógrafo Marcos Buiati ao lado de Caroline Magalhães, Clara Sales, Iago Gabriel Melo e Tascio Andrade, mergulham em um trabalho que traça convergências poéticas entre Dança e o Realismo Mágico Latino-Americano. O espetáculo tem entrada franca mediante retirada de ingressos uma hora antes na bilheteria do Teatro. No dia 13 de abril (sábado) haverá sessão inclusiva com audiodescrição.
O conto “A casa de Astérion” de Jorge Luís Borges, de onde o espetáculo parte, integra o livro “O Aleph”, de 1949, que é considerado pela crítica um dos pontos culminantes da ficção de Borges. O livro reúne em sua maioria peças literárias que “correspondem ao gênero fantástico”.
No conto de Borges, Astérion, que é também o nome próprio do Minotauro, é o personagem principal e narrador da história. Ele vive no labirinto de Creta e o habita como se fosse a sua casa. Astérion vive na solidão do labirinto esperando seu redentor; para ele, a pessoa que o matar o libertará de sua condição monstruosa. A imaginação é a única coisa que lhe permite que a solidão seja mais tolerável.
A morte é para ele uma espécie de libertação de todo mal, assim como ele liberta e redime os homens que entram no labirinto para matá-lo.
No conto, como em muitas de suas obras, Borges vê uma história popular através de uma lente diferente, lançando luz sobre outras possíveis interpretações dos eventos. O personagem explica sua personalidade narrando fatos do passado, como o pôr-do-sol de um dia em que ele sai do labirinto, e encontra o medo infundido nos rostos e atitudes das pessoas do exterior e se vê obrigado a voltar ao fundo de sua residência. Ele gasta seus longos dias jogando esconde-esconde, atravessando as vastas galerias de pedra do labirinto, fingindo dormir e às vezes fingindo que “outro Astérion” vem visitá-lo para passear com ele pela sua casa.
Finalmente, no fim do conto, os homens são mencionados, nove homens, que vêm a cada nove anos “para serem livrados do mal”, e cujos corpos, após serem mortos por Astérion, são deixados nos quartos vazios das galerias de pedra para distinguir umas das outras. Astérion especula sobre sua própria morte e aguarda ansiosamente a chegada de seu “redentor”, que o levará ao infinito.
A história termina com uma frase de Teseu: “Acreditarás, Ariadne? O Minotauro mal se defendeu”, revelando nessas palavras que o Astérion de Borges era de fato o Minotauro da ilha de Creta da mitologia Grega. O famoso mito de Teseu, Ariadne e o Minotauro conta a história do herói que foi incumbido da tarefa de matar o monstro do labirinto (para não acabar como um de seus tributos) e da jovem apaixonada por ele que, temendo que seu amor não voltasse, dá a ele um novelo de lã para que não se perdesse na volta entre os caminhos tortuosos do emaranhado de paredes de pedra – os famosos “fios de Ariadne”.
Este mito grego é conhecido por muitos de nós, e a maioria de suas versões, análises e interpretações partem sempre do olhar e da voz de seu herói, Teseu, e como seus simbolismos refletem uma visão de coragem, de um homem destemido, e da força que vem do amor de Ariadne para que sua missão fosse completada.
O interessante do conto de Borges, “A casa de Astérion”, é justamente o enfoque deste mito, largamente difundido, porém pelo ponto de vista do monstro, pelo olhar do Minotauro, que quebra com a visão tradicional de que os atributos do herói são os mais interessantes e importantes para se relacionar com mundo.
Assim, o que é implícito na história original (o fato do herói e o monstro estarem em pé de igualdade e a transformação do herói ser somente possível por conta da grandiosidade do monstro) Borges apresenta de forma explícita quando dá voz a Asterion e constrói por seu olhar a narrativa do clássico. Ainda que no fim Borges mantenha a versão original do mito, com a morte do monstro por Teseu, sãos as características bestiais do personagem principal que têm maior enfoque em sua narrativa, como metáforas para a inteligência, sagacidade, criatividade, plenitude e onipresença.
A ideia de quem é o herói é radicalmente invertida pela abordagem de Borges e a capacidade de adaptação, transformação e metamorfose presentes em Astérion são exaltadas como sendo indispensáveis para o alcance da sabedoria e da longevidade.
A metamorfose é representada primeiramente no próprio corpo de Astérion, que é em si um ser híbrido (metade homem e metade touro) e na relação que o monstro tem com a morte (tanto de seus tributos quanto de sua própria por Teseu), que não está associada necessariamente ao fim e ao desaparecimento, mas principalmente, ao infinito e à transmutação, características inerentes ao mundo e seus ciclos.
“O conto “A casa de Astérion” e a corporeidade de seu personagem principal, o Minotauro, serviram de mote principal na pesquisa e estruturação cênica, sendo alicerces para um corpo com forte construção gestual-expressiva, organizado em uma estrutura cênico-coreográfica que privilegia também uma hibridez da cena, com construção de fortes imagens poéticas em função da organização coreográfica.” Conta Marcos Buiati.
“O labirinto serve de referência para a estruturação espacial da cena, onde dançarinos conduzem a narrativa ao mesmo tempo que busca construir um corpo cênico poético expressivo que corresponda à suas características principais, através de suas movimentações.” Completa o dançarino e idealizador do espetáculo.
A narrativa não está necessariamente presa à linearidade dos acontecimentos conforme o mito original Grego. A Marcos Buiati interessa justamente a subversão do mito original proposta por Borges em seu conto, a partir do ponto de vista do monstro que traz consigo uma inversão de valores, uma crítica implícita aos valores ocidentais presentes na maioria dos mitos gregos.
Falar e dançar a partir do ponto de vista do monstro significa portanto estar aberto à seus processos de metamorfose, transformação e desconstrução da linearidade temporal e espacial que aparecem na narrativa original e que é relativizada no conto de Borges.
A partir dessa relativização, a noção de tempo na organização cênica também reelaborada, buscando dilatações, suspensões ou acelerações temporais que favoreçam o caráter imagético, irônico e questionador, característicos do Realismo Mágico, corrente literária característica da obra de Borges. Marcos Buiati se da narrativa e do universo imagético do conto de Borges, ao mesmo tempo que das características estilísticas e ferramentas de construção subjetiva que são particulares do Realismo Mágico latino americano como um todo.
O espetáculo busca a reflexão sobre a necessidade vital de adaptação, transformação e metamorfose, características tão presentes nas nossas relações humanas e que são apresentadas de maneira profunda no conto de Borges. “E, por este aspecto, podemos evocar também a própria condição humana. Buscamos constantemente a evolução, a mudança, mas quando ela se apresenta diante de nós, tendemos a negá-la apaixonadamente, como se temêssemos nossa própria metamorfose.” Por fim, o espetáculo busca instigar no público e nos artistas justamente uma relação de metamorfose, de transformação e alteração de percepção de nosso cotidiano, e quem sabe, fazer público e artistas se espantarem de novo com algo que já havia se tornado… rotina.
Sobre o artista:
Marcos Buiati é Mestre em Performances Culturais pela Universidade Federal de Goiás e Bacharel em Dança pela UNICAMP. Professor da área de dança do Instituto Federal de Brasília – IFB criou em 2017 o DESAPARECER – Núcleo de Pesquisa e criação em Dança que desenvolve trabalhos nas frentes de consciência corporal, preparação técnica, composição e dramaturgia. Foi contemplado em 2017 e 2015 pelo Fundo de Apoio à Cultura da Secretaria de Cultura do Distrito Federal e 2014 com o Prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança. Tem ampla experiência como dançarino/intérprete, tendo atuado em várias cias de dança no Brasil, como a Edson Beserra e Seu Composto de Ideias/DF (2013 – 2017), a Quasar Cia de dança/GO (2009 – 2013), a Maurício de Oliveira e Siameses/SP (2009), e a Cia Fragmento de Dança/SP (2007 – 2009); além de dançar em seus próprios projetos coreográficos.
O projeto é financiado pelo Fundo de Apoio à Cultura (FAC) da Secretaria de Cultura do Distrito Federal (Secult-DF), com apoio do SESC e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília (IFB).