Quem trabalha com produção cultural no Distrito Federal sabe que a realidade de quem produz na raça não é fácil, mas ainda assim pode ser prazerosa. A necessidade de aprender, de realizar, de tirar as coisas do campo das ideias e trazer para o jogo prático é o que caracteriza uma boa produção. Suene Karim é uma dessas profissionais que conseguem, numa conversa rápida, desenhar na cabeça a pré-produção, a produção e a pós-produção de um evento!
Na cidade de Samambaia, Suene se destaca ainda mais. Samambaia é a cidade da Paixão do Cristo Negro, da luta pelo Complexo Cultural, dos Palhaços do Galpão do Riso e das Quadrilhas Juninas estilizadas. A qual dessas Samambaias ela pertence?
A resposta poderia ser óbvia… Samambaia consegue ser mais! É a Samambaia da elaboração dos projetos culturais de vários segmentos, a Samambaia da luta da periferia e a Samambaia do Festival Magia Negra, que está entrando em mais uma edição sobre a coordenação de Suene.
Essa visão mais prática, ainda que repleta de romantismo, dá a noção da realidade do trabalho em si e provoca o realizador cultural para que melhore mais e mais, deixando de lado o ego inflado e colocando-se na posição de aprendiz. É sempre uma junção de experimentação, autoconhecimento, desafio e aprendizagem. A relação de Suene Karim com Samambaia começa antes do FAC, da LIC, da Rouanet… Ela começa na Samambaia do início dos anos 1990!
“Você já se deitou antes de dormir num chão de cimento queimado (estilo vermelhão) num barraco ainda sem telhas? Já foi na bodega da rua de baixo comprar biscoito de maisena pro café da tarde e a dona anotou no caderninho o valor devido? Já andou pelo menos 30 minutos na poeira vermelha fina até pegar um ônibus que quase tombava entre buracos? Então, essa é a minha Samambaia desde os 8 anos quando minha mãe ganhou o lote e construímos um barraco às pressas! A Samambaia que hoje tem o Complexo Cultural onde antes havia um mar de poeira e árvores retorcidas”, relembra a artista.
Essa Samambaia do perrengue, da luta diária e da dificuldade na formação educacional daqueles tempos é a mesma defendida pela produtora em seus projetos culturais. A Samambaia onde a poesia vem do barro e o sucesso vem da labuta. Essa Samambaia é a própria Suene Karim e Suene também é essa cidade.
Em seu ofício, a multiartista se encontra, se enxerga e se vê como parte do cenário do que hoje é entendido como Macrorregião 1.8 nos Editais do governo. E é nessa macrorregião que a menina se profissionalizou por meio de oficinas de teatro Miquéias Paz, onde aprendeu política social antes de se aventurar no mundo solitário da carreira solo.
“A partir daí entendi a arte como elemento essencial da política, junto ao grupo de militância política cultural Tribo das Artes, que vagava entre bares, praças, manifestações nas CNF’s e QNE’s da vida, passando pelo Teatro da Praça, Franguitos, Bar do Careca e indo até Ceilândia. Então meu ofício de atriz, gestora e produtora de arte e cultura tem memórias afetivas e ativas em todos esses lugares, pessoas e projetos”, reforça.
Suene trabalhava como secretária em um grande escritório de produção cultural e, por mais que pedisse, não tinha acesso aos textos dos projetos. Assim que saiu de lá, começou a pesquisar sites, textos e projetos diversos, até que conseguiu o trabalho de assistente de produção em 2003. De lá pra cá, aprovou muitos projetos por encomenda em editais culturais. Em números, sua trajetória se destaca no DF:
Foram 14 montagens cênicas entre teatro, dança e poesia;
11 oficinas entre teatro e dança;
13 coordenações administrativas e financeiras de projetos culturais;
85 projetos diferentes onde exerceu as funções de produtora, diretora artística, assistente de produção e curadoria;
26 projetos elaborados em editais culturais e, desses, pelo menos 20 aprovados e executados;
3 Edições do inesperado e essencial Festival Magia Negra, que tem se tornado referência da resistência do povo preto de periferia.
“Dizem também que o processo formativo se dá não só pela academia, mas pelas vivências práticas e pelos estudos solitários, sobretudo pelo engajamento com as causas da comunidade e das comunidades em volta. Isso me dá uma visão que meus laços com a cidade de Samambaia. Moro aqui, vivo aqui, pago minhas contas e me alimento nesse lugar. Por isso, entendo a cadeia produtiva da cultura que nasce em Samambaia e dialoga com outras cidades. Samambaia é o meu centro, meu eixo principal”, defende.
FESTIVAL MAGIA NEGRA
O Magia Negra é um Festival que abraça multilinguagens, passando pela música, pela performance, pela dança, pelas barracas de artesanato e, sobretudo, pelo ensinamento e valorização do candomblé e as referências das religiões de matrizes africanas.
A 1ª edição aprovada e executada em 2019 contou com o público de 3 mil pessoas e mais de 25 mil via internet. Foram 60 contratações, inaugurando o Complexo Cultural Samambaia após um alagamento inesperado um dia antes de sua abertura.
A 2ª edição aconteceu em 2021 e teve público superior a 4 mil pessoas, além de movimentar cerca de 30 mil internautas. A abrangência foi tanta que virou recomendação do Google Arts & Culture, da Google, sendo compartilhado por todo o mundo: https://artsandculture.google.com/story/EgXhbnoCweyGYg?hl=pt-BR. O projeto gerou 72 empregos na cidade.
A 3ª edição será realizada em junho de 2024 e aguarda também o último resultado da Lei Paulo Gustavo 2023 para uma ação comemorativa do Festival.
“De início, o Magia Negra demorou a ter uma aceitação popular, pois vivemos numa sociedade que sabe exercer o racismo e intolerância religiosa. Nossos primeiros cartazes de divulgação foram rasgados em uma escola que levaria seus alunos para uma das oficinas do projeto. Passeio cancelado, o que fazer? Desistir e seguir para outra unidade de ensino? Não! Trouxemos uma conhecida pedagoga de Maceió, com engajamento na internet e realizamos uma aula aberta na escola sobre a etimologia da expressão “Magia Negra”, o que o poema de mesmo nome exalta, e debatemos com os mais de 300 alunos que nos assistiam, perguntando quem ali se reconhecia preto, se sabiam o que era ser pardo, se já tinham sofrido ou praticado alguma violência racial… Ao final, recebemos alguns alunos chorando, nos agradecendo o momento, professores emocionados me pedindo mais ações! Isso é muito marcante pra mim como mulher parda, artista, militante, inquieta de ver os meus sem saberem quem são e esse é parte do legado já conquistado pelo projeto. Uma coisa é certa: é preciso ter uma educação antirracista para quebra de preconceitos, abertura de espaço, conhecimento das raízes e referências da cultura negra. Isso nos abriu portas na comunidade para que o projeto fosse um sucesso! O Festival Magia Negra não é um projeto para pretos e sim sobre pretos e para todos”, explica Suene.
Suene criou, de maneira orgânica e instintiva para gerir seus projetos. Uma metodologia de organização documental e de informações para que as demandas, datas, números, textos, contratações e relatórios fossem facilmente acessados e juntados para a montagem da prestação de contas, transformando essa linha de raciocínio em modelo pedagógico de gestão de equipes. Hoje, ela é referência em entendimento de projetos do FAC e isso fala muito de sua personalidade à frente das ações.
“Eu tenho muito que aprender na produção ainda. Nunca dá pra saber tudo. Atuo muito nos editais regionais, nunca fiz nada pela Lei Rouanet, por exemplo, mas me dou sempre a vontade de aprender, de escutar, leio e pesquiso muito sozinha. Faço pesquisas infinitas, pesquiso pelo prazer do estudo, pela paixão de conhecer a dança afro, a literatura e música nordestina, o vocabulário matuto, as comidas rurais, o olhar do Brasil profundo para as manifestações de cultura popular… Então, alguém que queira trabalhar comigo tem que ter essa paixão, porque receber dinheiro é essencial pra vida prática, mas ter prazer é essencial para alma”, finaliza.
Suene Karim está preparando a nova edição do Festival Magia Negra, empregando artistas, produtores, gestores e assistentes, dando à Samambaia uma identidade cultural plural e articulada. Viva Samambaia, viva Suene, viva a cultura do DF!